quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

http://www1.an.com.br/1999/dez/26/0ane.htm

O século da decolagem
Em ensaio bem humorado sobre o século 20, autor ironiza a aventura humana de voar
Milton Wendel
Especial para o Anexo
O século 20 foi o século em que o homo sapiens conseguiu desatar o nó da atração gravitacional da boa e velha Terra e começou a navegar, meio desajeitado, pelo universo próximo. Alguns corrigem esta frase com a observação de que o homem não "começou" a navegar pelo cosmos, mas sim "voltou" a trilhar o caminho pelo qual veio até aqui. Outros asseguram que a expressão "universo próximo" é um exagero porque, diante dos 4,3 anos-luz que nos separam da Próxima Centauri e dos 100 mil anos-luz que a galáxia tem de diâmetro, a ida à Lua não passa de uma caminhada pela vizinhança da toca. Quanto a "desatar o nó", convenhamos que o que ele fez foi meter o machado na corda.
De qualquer modo, foi no século 20 que a decolagem aconteceu. Caso advenham outros séculos, este nosso terá como símbolo a ignição pirotécnica do foguete, a singela constatação de Gagárin de que a Terra é azul e a pegada da bota de Armstrong no chão de Serenitatis. Em todas as escolas da galáxia haverá sempre um professor fascinado pelo século 20, assim como nas escolas de hoje há sempre um fascinado pelo Renascimento, pela tectônica das placas, pela literatura italiana. Os entusiastas do Vintão Maravilha dirão que fomos fabulosos, que conseguimos em 30 anos o que era inimaginável nos 30 mil anos precedentes.
Mas é bem possível que alguns professores, não muito entusiasmados, ou talvez herdeiros de nossa própria percepção fantasiosa do passado, descrevam a decolagem assim:
"Um deles, doutrinado e bem tratado, sentava-se na ponta de um tubo cheio de explosivo, enquanto outro, no chão, ateava fogo a um rastilho. A coisa explodia e o jato, direcionado para baixo, propulsionava a engenhoca para cima, por reação. Embora espantosamente rudimentar, geralmente funcionava".
Fantasioso ou caricatural? Os sujeitos que, no chão, ateiam fogo ao rastilho serão considerados sacerdotes, conhecedores dos mistérios da técnica. Afinal, é preciso muita autoridade para detonar uma bomba sobre a qual um semelhante está sentado e mandá-lo para o espaço sem garantias de que ele retorne vivo. Se na aldeia gaulesa do Asterix, o herói francês, alguém arriscasse uma experiência desse tipo, Goscinny e Uderzo escolheriam para sentar na ponta do tubo, certamente, o insuportável bardo Chatotorix. Talvez os historiadores do futuro jamais entendam a razão pela qual os astronautas do século 20 fossem escolhidos entre os indivíduos mais aptos física e mentalmente. Afinal, as marinhas de guerra não selecionam aqueles a quem dá a tranqüila e segura tarefa de esfregar conveses e descascar batatas. Será que buscamos, no espaço, o mesmo que os cavaleiros cruzados da Idade Média buscavam na matança em nome da fé?

Circo para entreter massas entediadas
Haverá um dia em que as naves com as quais o homem se lançou ao espaço, no século 20, serão vistas tal como hoje vemos as caravelas de Colombo ou de Cabral, ou talvez nem isso. A tecnologia utilizada ­ hidrogênio líquido, titânio e giroscópio ­ não excede muito aquilo que o homem já conhecia no tempo do porrete e da carroça: pólvora, bronze e roda.
Então por que o homo sapiens, que estava tão feliz juntando todo o dinheiro que a mais-valia poderia proporcionar, virou-se subitamente ao céu ­ que até então era do interesse dos poetas e dos meigos ­ e pagou uns rapazes para que subissem lá em colunas de fogo e de luz? Ameaça iminente de catástrofe? Não. Precauções com a superpopulação? Claro que não, pois população é mercado e mercado é money. Busca de riquezas? Impossível, pois as naves não possuíam bagageiro.
Como será que os estudiosos do futuro interpretarão o ânimo coletivo, o contexto psicológico, da decolagem do século 20 rumo ao cosmos?
"Foi tudo circo para entreter as massas entediadas", declara Charles Chaplin, brandindo em uma mão a bengala da humildade e na outra a lanterna de Diógenes.
"Tolice", intervém Henry Kissinger, limpando a narina com o dedo indicador, formando uma garra com o polegar, "pois as massas já estavam suficientemente distraídas assistindo ao futebol. A Copa do Mundo tem a idade exata da corrida espacial e a bola é mais popular do que a Lua".
Aldous Huxley tentou dizer que era tudo conseqüência das vontades profundas e insondáveis do Grande Irmão, mas foi impedido por um sujeito com enormes orelhas de abano, que puxou o franzino Huxley para trás e encarou o secretário de Estado: "Cale a boca, seu contrabandista de latrinas de campanha", disse o orelhudo. Era John Steinbeck. Esmagava, contraindo o punho, um cacho de uvas da Califórnia. Ele estivera escrevendo com o vinho que lhe escorria pelo braço.
­ Enquanto nos arrastávamos pela 66 com aquele Dodge velho que nos custou nossos animais, nossas lavouras e nossas dignidades, quando fomos excluídos quase ao ponto do canibalismo, sua escola aperfeiçoava o modelo que engorda ratos às custas do sangue dos americanos bons e honestos. Os fabricantes de satélites de espionagem ficavam ricos enquanto nós tínhamos que rastejar em busca de um buraco que nos protegesse do frio. Tudo para nos esconder o fato de que os soviéticos estavam na frente.
"Concordo", disse Lênin. "O modelo produtivista-consumista não tem limites éticos. Ele comercializa até mesmo seu anacronismo e suas imperfeições, com o que gera mais anacronismo e mais imperfeições. Não desejei que a liderança soviética, a liderança do proletariado (sorriu, com uma sombra de cinismo) vos causasse desconforto e contratempos. Mas deveis admitir que a corrida alimentou vosso modelo, ocupou vossas linhas de produção. E isto se traduz no que vós chameis de lucro. Não é assim?"
"Eu discordo", disse Krupp, o magnata alemão dos canhões. "Porque naves espaciais são mercadorias complexas. Exigem noventa e nove partes de cálculo e raciocínio e apenas uma parte de manufatura e produção. Se eu me metesse a construir naves espaciais, ao invés de canhões, eu jamais teria ficado rico. Eu nunca fabricaria naves espaciais".
"Ainda bem", disse Werner von Braun, o deus da chuva de bombas V. "Porque com a sua tecnologia tudo que teríamos conseguido seria um homem-bala de circo."
"E com a sua, tudo que podemos almejar é um piquenique ali na Lua e nada mais", interveio Albert Einstein, mostrando a língua. "Se me convidarem para um destes piqueniques eu explicarei algumas coisas básicas que vão abrir suas cabeças para a compreensão da grande viagem, e não de simples piqueniques. Não que eu não goste de piqueniques..."
­ Agrada ver que anda pensando em piqueniques, e já não tanto em bombas atômicas, cavalheiro Einstein.
Era o imperador Hirohito censurando o pai da relatividade com olhos frios e penetrantes. Leonid Brejnev pediu a palavra:
­ A respeito disso de lançar bombas sobre populações civis, quero declarar que jamais fizemos detonações atômicas com qualquer outro fim que não fosse científico e humanitário.
Houve risos esparsos. Soljenítsin e seus dois guarda-costas da Cia caíram na gargalhada. "Nunca deflagramos um mísero megaton em operações de defesa", continuou Brejnev. "E comemoram este mérito lançando sobre a Terra uma chuva de satélites desgovernados recheados de plutônio", emendou um militante do Greenpeace, aplaudido por Jane Fonda.
­ Devagar aí seu menino, seu messias de brinquinho.
Era um homem atlético, calvo, e usava um ray-ban. "Os donativos em dinheiro que a sua organização recebe no mundo inteiro são depositados em contas bancárias. As transferências são feitas por satélite. Eu já levei vários desses satélites lá para cima. Mês passado levei um que tinha uma pilha de plutônio que era isso" ­ o comandante dispôs as mãos diante do peito de modo que entre elas caberia um coco. "E todo mês levamos mais um. E eu sei que mais cedo ou mais tarde este lixo todo vai cair de volta. O que lhe pergunto, caro ambientalista, é: você vai continuar usando os serviços bancários?"
Não houve resposta porque, no fundo do auditório, alguém gritou com um vozeirão:
­ Se estão jogando lixo sobre suas próprias cabeças por que não param com isso?
Era um tipo imundo, vestido com uma manta esfarrapada. "Parar?", murmuraram todos juntos.
­ Sim. Parem. Se é inútil, polui e destrói, então parem.
A platéia caiu sobre o maltrapilho com uma vaia animalesca. Voaram sobre ele pastas, celulares, pagers, medalhas de general, de brigadeiro, de almirante, comendas das mais variadas ordens, prêmios Nobel, diplomas, certificados, rolos de macarrão e chaves de fenda. Charles Chaplin caminhou por entre a multidão alvoroçada escapando em ziguezague dos cotovelos errantes e dos objetos voadores. Defendia-se com a bengala formando um escudo patético. Chegou ao maltrapilho e estendeu-lhe a lanterna:
­ Tá.
O alvoroço foi aquietando. Quando o silêncio tornou-se absoluto, o maltrapilho perguntou a Carlitos:
­ Tem algum?
Carlitos deu de ombros e ficou encolhido, com a cabeça baixa. "Mas nenhum?", insistiu Diógenes. Carlitos encolheu-se mais. Diógenes deu meia volta e saiu. Carlitos acompanhou-o pela porta, quatro passos atrás, e sentou-se na escadaria do templo enquanto via o maltrapilho Diógenes afastar-se pela rua com a lanterna de procurar consciências (ou "homens honestos", como nos ensinam no primário). Uma cadelinha aproximou-se de Carlitos, sentou-se ao seu lado, de encontro ao seu quadril, e deitou o focinho sobre sua perna. Carlitos afagou-a. Ela chamava-se Crespinha, e nos jornais ficou conhecida por Laika, a cadelinha-cobaia que morreu em 13 de novembro de 1957 a bordo do satélite soviético Sputnik 2, após estar dez dias em órbita. (MW)